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Uma página do futuro

Atualizado: 21 de jul. de 2020

Rodrigo Acioli


Entre as páginas de um antiquíssimo livro encontrei uma página do futuro. Um fragmento inquietante. Em um fólio das prateleiras do Arquivo Nacional tudo acontecia como o esperado, as folhas devidamente carcomidas, as marcas das traças, o amarelecimento, suas rugas do tempo que nem mesmo a quietude do arquivo pôde disfarçar. O papel de linho, a tinta de preto ainda denso, viscoso e brilhante sinais de sua rigorosa casa editorial. Tudo de acordo com a data impressa em seu frontispício.

Tudo exceto uma página. Perdido em meio as setecentas páginas do fólio uma folha solta, de dimensão distinta das demais. Até aqui nada seria tão estranho, pois, algum leitor de um século do futuro poderia ter deixado uma folha sua ou de outrem para marcar uma página e ter ali a esquecido.

Todavia, ainda assim, dois elementos resistem a hipótese do esquecimento. O primeiro é o próprio papel feito de um material de todo desconhecido, muito distante do linho, ou mesmo das nossas fibrosas folhas atuais. Jamais encontrei material semelhante. Perfeitamente liso, sem ranhuras ou textura alguma. O segundo elemento é o próprio conteúdo assombroso. O papel cinza-chumbo estava em branco, até eu o retirar do livro e observá-lo à contraluz. As letras logo começaram a aparecer e na medida em que eu as lia elas desapareciam. O momento de revelação coincidia com o do apagamento daquelas palavras, das quais, só me restou um registro de memória daquilo que eu não pude esquecer. Cito, sabendo, no entanto, da imprecisão que me arrisco.

“O futuro é uma fuga. Estas linhas que tão logo lidas se apagarão são inúteis e desesperadas. Eu fugi do meu tempo, eis-me diante das ruas e dos edifícios, das praças, do rio que corre devagar e brilhante como jamais havia imaginado. Pessoas humanas por todos os lados, aos milhares. Fico nervoso diante delas, posto que no futuro quase não temos contato com outros humanos. Nem mesmo sei se sou humano, já que só os encontrei neste século. Não sei se me veem, ou o que os olhos deles fazem sobre minha imagem. Estou feliz e continuarei fugindo ao passado. Espero morrer na antiguidade entre os catadores de sambaqui. Tenho que apressar em minha fuga. O tempo é severo e nos arrasta ao futuro. E, a ti, único leitor que estas linhas terá, fuja, pois tudo acabará lenta e tediosamente. Provavelmente não haverá nem uma testemunha do fim dos tempos. Nem eu. Do tempo em que venho nada disso é mais possível, esse pulular desenfreado de vida, estas ruas repletas de calor. Essa música de vida não tocará no futuro, apenas um arrastar lento das máquinas de fugir do tempo.”


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